quarta-feira, 24 de setembro de 2008

O culto da homossexualidade em Zézé Camarinha

Acaba de ser publicado, com a prestigiada chancela da D. Quixote, um texto que poderá vir a tornar-se histórico no nosso panorama literário.
Intitula-se Zezé Camarinha, o último macho man português, e não tem, mas devia ter, o alto patrocínio da ILGA, porquanto opera o pequeno milagre de fazer a apologia da homossexualidade de um modo que é comovente sem ser panfletário. Camarinha, é curioso notá-lo, não seria capaz de panfletarismo, seja porque a sua personalidade é do tipo dócil, seja porque desconhece o significado da palavra «panfletário» - tal como de qualquer palavra com mais de três sílabas, e a esmagadora maioria das que têm mais que uma.
O primeiro aspecto a salientar é que a obra é inclassificável. Uso aqui «inclassificável» não no sentido de ser difícil de catalogar em algum dos géneros literários habituais (conto, romance, biografia), mas sim no sentido que lhe dá a frase «Eh pá, ele assaltou a velhota? Esse tipo é inclassificável.» Em segundo lugar, importa referir que o próprio autor não se enquadra no perfil tradicional de «autor», na medida em que, ao contrário da maioria dos autores, Camarinha não é ainda um homo sapiens sapiens, nem aparenta poder vir a sê-lo, mesmo na hipótese académica de viver até aos 400 anos.
E, no entanto, o livro é um monumento de ironia. Percebo que um leitor menos sofisticado possa não detectar, em Zezé Camarinha, o último macho man português, o subtil elogio da homossexualidade, mas o certo é que todos os sinais estão lá, à espera de serem colhidos e interpretados por um crítico competente e arguto. Felizmente, é o meu caso. A dedicatória, que é todo um programa, diz: «To all the darlings», e aparece assinada «Josef of the moustache from Praia da Rocha». Sei que a simples referência ao bigode, por muito que este seja um elemento essencial da cultura gay, não é suficiente para definir a personalidade do autor, mas é um primeiro indício a ter em conta. Outro, mais significativo, é a firme publicitação que o narrador faz da sua heterossexualidade, que é frequente a ponto de se tornar suspeita:
«Gosto e vou gostar sempre de mulheres» (pág. 11); «[Sobre os filhos:] Vão saber que o pai deles sempre foi louco por mulheres» (pág. 12); «(...) os jovens de hoje já não gostam tanto de mulheres como eu» (pág. 12); «(...) eu adoro mulheres loiras» (pág. 14), etc. E ainda quase não saímos do prefácio.
A tensão entre o elogio da masculinidade (um elemento central da cultura gay) e de uma certa exuberância heterossexual, por um lado, e a sugestão da homossexualidade, por outro, é sustentada magistralmente ao longo de todo o livro. Um dos pontos em que essa tensão se torna mais evidente é o episódio em que Camarinha observa um casal a fazer amor numa varanda: «Confesso que me começaram a dar os calores e que já me estava a ver lá em cima, com eles na janela. Era mais com ela mas se o totó quisesse estar a olhar, a mim não me importava nada!» (pág. 76). Repare-se como tudo neste excerto é exemplar da contradição macho/gay: primeiro, a expressão «começaram a dar-me os calores», mais apropriada para uma senhora de meia idade na menopausa do que para um garanhão; segundo, aquele «era mais com ela», e a sua maravilhosa ambiguidade (era só com ela que o narrador queria estar? Não. Era mais com elas); terceiro, o entusiasmo perante a hipótese de ser observado por outro homem. Esta ambição reforça uma confissão anterior, também muito expressiva:
«Sempre adorei mulheres, desde muito catraio, mas aquilo de que eu mais gostava era de as exibir.» (pág. 13). A conquista de mulheres como forma de atingir e impressionar homens: eis aqui um bom resumo deste magnífico volume, todo contido naquela belíssima adversativa («mas aquilo de que eu mais gostava»).
Também interessante é o modo como Camarinha descreve o seu relacionamento actual com «uma inglesa casada (...) mas cujo marido sofre de Alzeihmer (sic)». Diz ele: «Quando a conheci metia qualquer menina de 20 num chinelo.
Agora já não está tão bonita mas eu, honestamente, gosto muito dela como pessoa.» Qualquer homem sabe que gostar de uma mulher como pessoa é coisa de larilas. Uma ideia que não esmorece quando Camarinha informa: «Ela tem muito dinheiro e não tem herdeiros, pois o marido está mesmo em fase terminal. Em princípio, vai ser tudo para mim mas eu nunca pedi nada! (...) Gosto muito da minha senhora e ela de mim. Por isso tem o testamento feito e sei que vai estar tudo em meu nome quando ela se for.» Camarinha pretende levar-nos a crer que o seu interesse na senhora é outro mas, depois de ter reconhecido, num assomo de honestidade (como é precioso aquele «honestamente»!...) que gosta dela «como pessoa», dificilmente alguém se deixa convencer. Um livro a todos os títulos comovente.

Nenhum comentário: